Ainda me lembro da chegada da Ritalina ao Brasil, em 1998. De uma hora para outra, a imprensa em peso começou a falar de um tal de TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Seus sintomas: falta de concentração e agitação. Sua principal consequência: o fracasso escolar.
Milhares de pais respiraram aliviados ao ler aquilo. Afinal, surgia uma explicação para as frequentes chamadas à escola e para os boletins vexaminosos, fonte de tanta angústia familiar. Nossos filhos estavam doentes. Eram portadores de uma síndrome e ela tinha tratamento. Um comprimidinho – nem tão caro assim – chamado Ritalina.
Deve ter sido a campanha mercadológica mais bem-sucedida de toda a História. Ela acertou em cheio na maior angústia dos pais contemporâneos: o sucesso e a felicidade dos filhos. Hoje, 15 anos mais tarde, o Brasil tornou-se o segundo maior consumidor do mundo de Ritalina, perdendo apenas para os Estados Unidos. De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), só entre 2009 e 2011, o número de caixas vendidas mais que dobrou – pulou de 557,5 mil para 1,2 milhão.
Ao mesmo tempo em que isso aconteceu, também aumentou o número de pessoas – pais e profissionais de saúde, principalmente – que começou a questionar a medicação indiscriminada de crianças. E a constatar o óbvio: remédios só funcionam para quem está realmente doente.
Digo isso com conhecimento de causa, porque fui uma das mães que acabou recorrendo à Ritalina para tentar resolver uma situação aflitiva. Depois de ver minha filha ser reprovada duas vezes na escola e passar por uma multidão de psicólogos e psicopedagogos, cedi ao argumento irrefutável de um amigo: “Você acha que a Ritalina vai fazer mais mal a ela do que essas reprovações sucessivas?” Fomos a um neurologista. Ele diagnosticou déficit de atenção e prescreveu Ritalina.
É importante dizer que minha filha nunca foi hiperativa, muito pelo contrário. Era só, como diria minha avó, “distraída demais da conta”. Ela tomou o remédio por quatro meses. Não observamos nenhum efeito prático. As notas continuaram baixas e ela continuava dizendo que “não tinha dado tempo” de copiar tudo do quadro-negro, ou de ler o texto, ou de fazer a prova etc.
Então, num dia em que eu encarava um trabalho excepcionalmente chato, resolvi tomar um dos comprimidos para ver, afinal, que efeito fazia. E tive a mesma reação dela. Tirando os ombros contraídos e a taquicardia, não melhorou em nada minha concentração. Acabei jogando o resto da caixa fora.
O problema da minha filha foi resolvido com um conjunto de ações. Mudança de escola, professor particular e psicanálise. Sim, psicanálise, daquela freudiana, tão fora de moda nos dias de hoje.
Hoje, ela consegue estudar muito melhor e, se não é a primeira da turma, tampouco faz feio. Continua distraída? Continua. Mas é uma distraída funcional. Sei que, com suas notas, jamais passará para uma faculdade de Engenharia ou Medicina – e é ótimo que seja assim. Engenheiros e médicos distraídos podem ser perigosos.
No entanto, na escola, ela adora Filosofia. Dança como uma pequena Isadora Duncan. Senta-se à máquina de costura como se tivesse nascido com a agulha na mão. Tem uma facilidade para o aprendizado de línguas que me espanta.
Tenho certeza de que há no mundo um lugar para pessoas muito distraídas. Um não, vários. Ela terá muitas possibilidades de escolha. Como eu tive, como tantos colegas “com a cabeça no mundo da Lua” tiveram.
No nosso caso, a Lua é aqui.
P. S. Em 2012, Departamento de Psicobiologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo fez um estudo com 36 jovens saudáveis de 18 a 30 anos e mostrou que o uso da Ritalina não promoveu melhora cognitiva em nenhum deles. Não foram verificados benefícios na atenção, memória e nem na capacidade de planejar e executar tarefas.
Parece que, finalmente, chegamos ao óbvio. Remédios só funcionam para quem está doente. E “viver no mundo da Lua” ou ser “uma criança impossível” podem ser apenas características de cada um.
Imagem destacada: Ciadefoto
12 Comentários
adorei a matéria mt informativa.
Ana Kelli, muito obrigada. Foi uma sorte pro Mundo Ovo que a Rosa escrevesse esse texto, tão pessoal e ao mesmo tempo tão elucidativo.
Nossa, gostei muito desse texto e to mandando pro meu esposo ler. Meu filho tem 5 anos e começaram as “chamadas da escola” e nós mesmo ficamos com a pulga atrás da orelha vendo q as definições de deficit de atenção se encaixam nele. Ainda não levamos a nenhum especialista, e torço de coração pra que ele seja apenas mais um distraído no mundo. Abraço
Perfeito o texto e o depoimento!
Bianca, obrigada. O Mundo Ovo existe, sobretudo, porque queríamos dar um basta nos radicalismos e imediatismos que envolve muitas das questões familiares da atualidade. O texto da Rosa, ao mesmo tempo em que é um depoimento super sensível, é também um alerta de que as crianças não são robôs e são únicas em suas personalidades. Precisamos, nós pais, respeitar as diferenças e buscar menos a “perfeição”.
Fiquei impressionada com essa matéria, pois também mediquei meu filho com Ritalina o que foi um grande erro. Meu filho é apenas uma criança possível pois com muita paciência e amor conseguimos controlar seu gênio, claro que não podemos esquecer o apoio da psicologia.
No caso do meu filho o remedio fez um efeito maravilhoso, ele não concentrava e tão pouco aprendia a materia dada pela professora. eu sabia que ele tinha o TDAH, pois trabalhando com crianças querendo ou não se compara a outras e ele mesmo, sofria. Graças a Deus ele é medicado e quero continuar, mas ele não toma o ritalina de ejeito 4 horas , ele toma O remedio concerta, que na verdade é o ritalina com efeito de maior duração..Quando falamos de TDAH é muito relativo, cada ser humano reage de uma maneira, não podemos generalizar…..
Trabalho em uma escola como psicologa adorei o texto irei passar para todos os nossos colaboradores.
Ana Catharina, que ótimo! Fico feliz que queira divulgar o excelente texto da Rosa. Beijo e obrigada!
Darei uma palestra neste sábado sobre o tema na FAculdade de Medicina Famerp em Rio Preto. Foi bom ter lido seu texto, leio a questão no mesmo sentido que você tratou do assunto. Mas como vou dividir a mesa com defensor perdigueiro da Ritalina; to procurando confissões como as suas.
me desculpe mas discordo. O tdah ou mundo da lua, é uma doença sim e que Se não tratada pode levar a quadros de ansiedade generalizada, pânico, depressão entre outras comorbidades na vida adulta. Cheguei aos 35 anos pra descobrir isso. Minha vida toda sofri com todos os transtornos possíveis sem saber que o pano de fundo era o tdah. E eu não apresentava sinais de hiperatividade física, eu tinha hiperatividade mental, o que é uma tortura sem tamanho. Esse “mundo da lua” desestruturou toda a minha vida, com empregos, relacionamentos e cmg mesma. Não desejo que alguém chegue a vida adulta sem o tratamento adequado. É muito sofrido.
Chorei na parte do ela adora Filosofia. Quando entendemos e aceitamos o que nosso filho é e não o que a gente queria que ele fosse, neste momento oferecemos uma vida de qualidade a ele. Parabéns.